CAPÍTULO I
OPERAÇÃO SALAMANDRA


...........A ORIGEM DE TODA A ESPÉCIE DE PROBLEMAS 

E o Senhor disse-lhe: Entra na arca tu e toda a tua casa, porque te reconheci justo diante de mim no meio desta geração. Toma de todos os animais puros sete pares, macho e fêmea; e dos animais impuros um par, macho e fêmea. Toma também das aves do céu sete pares, macho e fêmea; para se conservar a raça sobre a face de toda a terra. Porque, daqui a sete dias, farei chover sobre a terra durante quarenta dias e quarenta noites; e exterminarei da superfície da terra todos os seres.  Génesis: 7.


 Nomina nuda & carbonaria

.........Este trabalho é o primeiro de uma série, ainda em preparação, acerca do que designamos, usando a expressão de Perez Arcas (1), por espécies críticas. Críticas são aquelas cuja literatura revela qualquer tipo de problemas - por serem imaginárias, introduzidas ou hibridadas. 

Imaginárias são as espécies que não existem na natureza, como a Hyalonema lusitanica (esponja). 

Errata: Ainda não foi demonstrada a existência de uma população em Setúbal, sua terra típica, mas vive no Atlântico. 

Existem e os animais até são comuns e cosmopolitas, mas nunca foram descritas com certos nomes. Há nomes inventados para espécies já conhecidas com outros. Os zoólogos reconhecem perfeitamente estas espécies, às vezes são as vulgares de Lineu. Em nomenclatura biológica, designam-se por nomina nuda: nomes nus, sem descrição própria, que não correspondem a textos publicados antes.

Noutros tempos, os naturalistas sabiam que os neologismos denunciavam animais muito vivos, muito dados, disponíveis para travar relações íntimas com parceiros de diversa categoria e nacionalidade. Hoje, a ciência parece ter perdido o sentido de humor.

Cruzar animais de grupos taxonómicos diferentes, seja uma lontra e um rato, para obter uma espécie nova, como aconteceu com o musaranho alontrado ou lontra arratada da costa ocidental africana (se ali existe ainda) que dá pelo nome de Potamogale velox, é um caso complexo de engenharia genética. O mais simples que encontrámos consiste em seleccionar animais da mesma espécie que excepcionalmente tenham conservado caracteres juvenis. Dada população de aves adultas tem plumagem escura, quando os imaturos a têm clara. Mas alguns adultos, por anomalia, apresentam sectores de plumagem clara. Seleccionando casais com esses caracteres anómalos, e introduzindo-os numa ilha onde a espécie não exista, a descendência apresentará como aspecto dominante esses sectores de plumagem clara. Isso faz com que na ilha passe a existir uma espécie nova, distinta da progenitora, cujo habitat pode localizar-se no outro lado do mundo. 

Estas experiências eram sigilosas, mas os cientistas arranjaram código para as comunicarem uns aos outros e à posteridade. Um dos aspectos do código secreto é o nomen nudum, que transmite informação clandestina. Por exemplo, Testudo lutraria é nome inventado por Gray para Emys lutaria - suja de lodo. Depois de passar a lutraria, ficou mais bem apresentada, com casaco de pele de lontra e tudo. Estamos a falar dos cágados ou sapos-conchos, de carapaça escura, que existem na Europa, Ásia e África - um de nós tem um em casa, dá pelo nome de Chico, e aprecia sobremaneira ver os telejornais. Entre outros nomes que já tiveram, aparecem-nos Testudo punctata (nomen nudum) - para informar que passou a ter pintas; Emys iberica (nomen nudum) - os cágados da Península Ibérica têm mais salero que os franceses ou alemães, por isso merecem ser considerados espécie distinta; Emys tigris (nomen nudum) - as pintas transmutaram-se em riscas; Emys europaea var. concolor - há umas que precisam de se distinguir das escuras numa variedade colorida; Emys lutaria taurica (nomen nudum) - para esclarecer que lhe nasceu algo na testa. Não se diz quais são os ornamentos, mas por analogia com uma Corucia zebrata que se transformou em Cornucia, sabemos que enfeites são.

Lutraria, tigris e taurica informam, de forma carnavalesca, que os animais foram hibridados. O burlesco perturba a apreensão da realidade: não é possível obter híbridos do cruzamento de tartarugas com lontras, tigres nem touros. Como isto não é crível, não se acredita. É óbvio no entanto que se obtêm híbridos do cruzamento de tartarugas europeias com tartarugas africanas ou americanas. O ludíbrio vem, não de se ocultar a verdade, sim de a exibir numa grandiosa hipérbole. Há um dizer em excesso. Este tipo de máscara é constante; na história da Chioglossa, em momento nenhum se pode afirmar que os autores antigos sonegam informação. Não, eles mostram a nudez crua da verdade sob o manto diáfano da fantasia, para citarmos Eça de Queirós.

Voltando aos cágados vulgares de Lineu, são hoje Emys orbicularis (Linnaeus, 1758), e as dezenas de nomes que já lhes chamaram constituem a sua sinonímia. Por muitas voltas que lhes tenham dado ao cartão de identidade, o carnaval permanece: orbicularis quer dizer que tem no culus todo o orbe terrestre. Ou que o tem sentado em todo o lado, o que é ainda mais perturbante para a zoogeografia.

O facto de eventualmente conhecermos os animais, sendo capazes de reconhecer alguns se os virmos num frasco ou no campo, é irrelevante. O objecto do nosso estudo é só alguma literatura que lhes diz respeito.

Reunimos boa quantidade de textos que não deixam lugar para dúvidas acerca do lançamento na natureza de híbridos artificiais. Porém, no que diz respeito aos motivos que lhe subjazem, estamos numa fase preliminar, em que tentamos compreender, aventando hipóteses. A operação envolve cientistas de primeiro plano - portugueses, ingleses, franceses, alemães, italianos, belgas, espanhóis, americanos, etc. -, começou talvez ainda no tempo de Lineu e repercute-se na actualidade. Neste tão grande lapso, com tanta personagem envolvida, não existe certamente móbil comum. Haverá muitos, desde os individuais aos sociais, implicando a esfera científica, agrícola, comercial, religiosa e política. 

Suspeitamos que alguns incidentes tinham na origem carácter de prova, praxes habituais entre universitários, cuja tradição se perdeu com a laicização do ensino e abandono do latim. Outros podem decorrer de remotas aclimatações para benefício agrícola, de que raros conservam hoje lembrança.

O incidente da Hyalonema lusitanica Bocage, 1864 (de Setúbal, terra natal do Bocage das anedotas), que começou por ser Hyalonema Sieboldi e Hyalonema mirabilis (do Japão) é típico exemplo de praxe, uma partida inicialmente pregada a Gray e que este pregou a Bocage trinta anos mais tarde. O cerne do exame, em que ambos chumbaram, era saber se o produto a classificar (um feixe de compridas espículas de sílica - glass rope, diz Gray - com mais um aparato a revestir-lhes uma das extremidades como luva incrustada de outros aparatos, ora corais ora perceves) era natural ou artificial e, a ser natural, se era um coral ou uma esponja. Arriscando-nos a chumbar também, o que será mais motivo para riso do que para lágrimas, diremos, sem nunca termos visto essas mitológicas criaturas a que os pescadores de Setúbal se diz que chamavam chicotes do mar, que a Hyalonema lusitanica era um arranjo artificial feito de um bocado de Euplectella speciosa (esponja das Filipinas) com produtos naturais variáveis, a simularem diversas associações de animais, entre eles Palythoa fatua. Palitos fátuos é à evidência um nome expressamente inventado para referir qualquer espécie vulgar de corais. Palitos e outros signos taurinos ocorrem com alguma frequência no código secreto usado para denunciar espécies críticas. A Chioglossa, por exemplo, vai ser encontrada em Vila Touro. Há uma dimensão herói-cómica na literatura zoológica que hoje nos causa estranheza, mas tem de ser assimilada como sentido fundamental da Macarronésia - Alice no país das maravilhas, terra de ricas misturas, em que o imaginário hibrida com o real.

Na segunda metade do século XIX, assistimos ao desagregamento da espécie lineana, expressa no binómio latino. O modo completo de identificar uma espécie ou população inclui o nome do autor que a descreveu e a data em que o fez, constituindo isto uma referência bibliográfica. O primeiro nome é o do género, o segundo da espécie - Chioglossa lusitanica Bocage, 1864 (Amphibia: Salamandridae). A sistemática é a ciência que arruma os seres vivos em subespécies, espécies, géneros, famílias como Salamandridae e classes como Amphibia, que inclui os antigos batráquios - sapos, rãs, salamandras, tritões, cecílias.

Isto significa que a Chioglossa só foi conhecida da ciência em 1864, e que há um artigo publicado nesta data com a descrição. Se não houvesse, tratava-se de um nome nu. A descrição tem de ser lida até pelos zoólogos da Tailândia, para não se dar o caso de algum que venha a Portugal, e descubra a salamandra no Carvoeiro, a descreva como se fosse nova para a ciência. Se não conhece os animais e pensa que nunca foram descritos, terá não só de ler tudo o que se publicou sobre a sistemática (classificação) das salamandras, como de estudar os tipos - tipos são os animais que servem de modelo à descrição. No caso da Chioglossa, eles já não existem em Portugal, mas pode Bocage ter oferecido algum ao British Museum, e nesse caso ainda lá está. No British Museum nada se perde, tudo se conserva. Quando os tipos desaparecem, outros têm de ser escolhidos para substitutos, identificados e descritos, em publicação especial. Não temos conhecimento de que isso já tenha sido feito para a Chioglossa lusitanica. Esse trabalho devia ter sido publicado o mais tardar em 1915, data em que se efectuou, como veremos, uma revisão das colecções gerais de répteis e anfíbios do Museu Bocage.

Um dos aspectos mais interessantes da história que vamos revelar diz respeito a algo de muito insólito - se autor da descrição é apenas a pessoa que descreve as características de uma nova espécie, vamos encontrar também criadores. Há espécies, como a Chioglossa, criadas pelo homem - esses animais não existiam, houve adições à fauna, à maneira do que se pratica com as raças de animais domésticos. Galinhas, gatos persas, vacas turinas, machos e mulas, não existem na natureza - são criações humanas, cuja sobrevivência depende da nossa vontade.

A espécie lineana desagrega-se quando os sistematas pretendem dar conta de variações anatómicas - supõe-se que geográficas. Assim, entendem que os indivíduos da ex-Lacerta muralis, a lagartixa vulgar, não são iguais em toda a sua área de distribuição - ou porque têm mais ou menos riscas, ou porque as lagartixas da Serra da Estrela são de cor clara e as das Berlengas muito escuras. Estas pequenas diferenças permitem subdividir a espécie em grupos menores. O modo de os exprimir é através do trinómio - Lacerta muralis var. Bocagei. O conceito de variedade é pouco claro e vai ser substituído pelo de subespécie, que também se traduz pelo trinome - Podarcis lilfordi carbonerae.

Nas Baleares, os sistematas começaram por entender que existia a lagartixa do continente - Lacerta muralis. Numa segunda fase, foi separada como espécie endémica - Lacerta (=Zootoca, actual Podarcis) lilfordi. Depois, como ao longo dos anos foram descobrindo que cada ilhéu tinha a sua forma ou várias, neste momento há umas cinquenta subespécies de duas espécies, cujo nome subespecífico em geral indica o ilhéu onde vive (os nomes também podem corresponder a dedicatórias a alguém).

(Para as Baleares estão registadas cerca de 100 formas de répteis e anfíbios. Veja a lista em "Naturalismo e conhecimento da herpetologia insular", neste site)

Podarcis lilfordi lilfordi (Günther, 1874)
Isla del Aire.
Podarcis lilfordi gigliolii (Bedriaga, 1879)
Foi descrita originalmente como variedade. Isla Dragonera.
Podarcis lilfordi conejerae (Müller, 1927)
Islas Conejera e Na Redona.
Podarcis lilfordi addayae (Eisentraut, 1928)
Islas de Addaye.
Podarcis lilfordi espongicola (Salvador, 1979)
Isla L’Esponge.
Podarcis lilfordi estelicola (Salvador, 1979)
Estel de Fora e Estel des Dos Cols.
Etc., etc..
Podarcis lilfordi carbonerae Mellado & Salvador, 1988
Isla Carbonera
Podarcis pityusensis pityusensis (Boscá, 1883)
Descrita originalmente como Lacerta muralis var. pityusensis.
Ibiza e Isla Negra de Llevant.
Podarcis pityusensis affinis (Müller, 1927)
Isla Malvin pequeño.
Etc..

No que diz respeito à Chioglossa, como ainda não foram descobertas variantes que tornem distintas as populações de Villatoro, Ribeira de S. Paulo, Sintra, Elvas, Monte Redondo, Saudinha, Carvoeiro e Ribeira de Cozelhas, só teremos de lidar com a espécie única do género único Chioglossa lusitanica, o que é mais fácil.

A Chioglossa chama-se lusitanica - algo idêntico a carbonerae - porque Bocage pensava que a salamandra só existia na Lusitânia. Para ele eram importantes as espécies endémicas, as que só existiam no Ilhéu Branco (Cabo Verde) ou na Lusitânia, como para outros são importantes as espécies que só existem nas Galápagos, e compreende-se: ninguém vai de propósito à China para ver os gatos, mas já podemos ir de propósito à Isla Carbonera (tem parque turístico), situada junto ao Puerto de Campos, SW de Maiorca, para ver as Podarcis lilfordi carbonerae, pois estas lagartixas dos muros, segundo os herpetologistas, só existem na Isla Carbonera, um dos seis ilhéus que se localizam na baía de Campos - Baleares.

Explicamos com pormenor onde se situa a Ilha Carbonera, não por razões turísticas ou por acreditarmos que ali existiu uma Alta Venda, barraca ou choça carbonária, sim porque os autores da descrição da subespécie, os espanhóis Mellado e Salvador (2), dizem que não sabem onde ela fica: a Isla Carbonera deve ser um ilhéu tão insignificante que o seu nome nem figura nos mapas - dizem eles, por isso não conseguiram localizar os animais ao vivo, no seu habitat, o que descobriram foi oito exemplares de lagartixa da Isla Carbonera num museu alemão. 

Na etiqueta, a Isla Carbonera fora anexada à Menorca.